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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A pequena casa de madeira da Rua Heitor Penteado, construída em meados do século passado, ainda existe e resiste firme, apesar das muitas reformas por que passou ao longo dos últimos 65 anos. A velha casa ainda conserva sob si os mesmos troncos sobre os foi então assentada, ainda que já agora pareçam imensos molares desgastados pelo sol, cupins e por muitas chuvas que por eles passaram, teimando em sobreviver aos tempos, aos fatos e as pessoas.
Isso só prova que desde rapazote, o velho Tramontini , já tinha algum talento para a arte de construir casas e com o mesmo carinho com que a fez tábua a tábua, prego a prego e telha a telha, ainda a teima em reparar, de ano em ano, ocultando os defeitos da velha senhora, como se entre eles houvesse um pacto mágico de se manterem em pé. E o mais curioso é que sempre que pode, ainda usa nessa tarefa a mesma enxó com que a construiu e mesmo agora, aos 81 anos ele ainda teima em andar sobre os seus telhados da mesma forma como anda sobre os andaimes da casa que ajuda a construir para seu filho, usando ainda, acreditem, a mesma enxó..
Uma enxó, para quem não conhece, é uma ferramenta em forma de pequeno machado que serve para aplainar madeiras de forma rústica e que é usada desde os tempos antigos. Aliás,essa enxó, para consternação de seu dono, foi dada como perdida por muito tempo, tendo sido objeto de muita procura e que, de fato, estava era caída num quanto do quarto de ferramentas do velho Tramonta.
O rapazote era é o meu pai, Ernesto Tramontini, filho de Genovieffa Tramontina, antes Genovieffa Cosin , filha de Giusepe Cosin e Anna Cosin, antes Anna Ostanella. O pai de meu pai era Constantine “Floriano” Tramontina , sendo Constantine ou Constante Tramontina como o chamavam e como foi enterrado, filho de Giovanni Tramontina e Sicilia Tramontina, que antes já era Tramontina, eis que, seriam parentes entre sí nas pequenas aldeia alpinas de tramonto de sopra, tramonto de mezzo e tramonti de sota, de onde meu pai herdou o sangue austro/italiano.
O que interessa é que foi nessa casa em que, por ocasião da hora da Ave Maria, de um mormacento dia de julho de 1956, quando já ia o sol pelo meio de seu caminho, se ouviu-se uma jovem senhora gritando para que sua conhecida de nome Salvelina corresse buscar a parteira Maria Negreira pois que já se lhe advinham primeiras dores do parto.
A jovem senhora era e é minha mãe, Palmira Lopes Tramontini, antes Lopes de Almeida, filha de Lucinda Maria Lopes, antes de Lucinda Rodrigues de Lima, sendo Lucinda, filha de Joaquim Rodrigues de Lima e de Cecilia Rodrigues de Lima, já havendo ,de onde minha mãe já herdou uma mistura de sangue português e espanhol. O pai de minha mãe era Joaquim Lopes de Almeida, filho de Antonio Lopes de Almeida e Guilhermina Maria Lopes de Almeida, antes Guilhermina Maria da Conceição, de onde minha mãe já herdou uma mistura de sangue africano com guarani e espanhol.
A Dona Maria Negreira, que não se lhe façam a desfeita de mencioná-la apenas en passant , como uma parteira qualquer pois já naquele tempo era parteira de renome que já havia trazido ao mundo um sem números rebentos, sejam oriundos de partos fáceis ou dificílimos, com crianças se apresentando de frente, de lado ou de bunda. A boa parteira em tudo dava jeito, não se conhecendo um caso se quer em que tivesse perdido a criança e muito menos uma mãe .
Por mais que a muitos possa parecer estranho e fantástico, me recordo muito bem de quando a boa Maria Negreiros me trouxe a esse mundo. Lembro que tinha um rosto marrom como o de minha mãe, redondo, bondoso e de riso branco e fácil, pescoço forte amparando uma cabeça bem formada, coberta de longos e já brancos cabelos, estes encimados em um coque arrematado por um lenço branco. O caso é que a velha Maria Negreiros, pegou seu embornal de parteira, seus panos, barbantes, algodões e ferros e chegou rápida à pequena casa.Fazia calor no quarto que estava com a janela e porta fechadas e o suor escorria pelas faces de Dona Maria Negreiros não só pelo quarto abafado quanto pelo esforço feito para subir a rua com suas alpercatas, apressada e ciente da responsabilidade que lhe colocavam sobre os ombros .
Ao lado da cama onde minha mãe já estava há tempos nos trabalhos de meu parto, a boa parteira colocou uma grande bacia de latão estanhado e mandou que se lhe trouxessem, o mais rápido possível, água quente. A água quente chegou pouco depois, numa chaleira grande, dessas que não se vê mais, e a parteira mandou que fosse enchida novamente e recolocada de volta sobre o fogão de lenha da cozinha. Ato contínuo, forrou a cama com os lençóis mais gastos da casa e olhando bem nos olhos de minha mãe lhe disse com um riso no rosto que se acalmasse, porque a criança já estava coroando. Mais água quente foi trazida, e fria também, e tudo foi colocado na bacia cuja temperatura, com o cotovelo, a boa senhora tomou. Já no quarto estava minha tia Polônia muito embora, como era de seu costume, minha avó, que para nós era Josefa, se mantinha ausente, com a desculpa de que ainda não conseguira se desvencilhar de seus afazeres na casa, em cujo grande quintal, ficava a pequena casa onde viria em breve nascer.
O que ocorria era que minha avó Josefa só dava as caras quando os netos já haviam nascido, havia sido assim com os outros e era assim que ela fazia pois, como dizia, não tinha nada ali a fazer para ajudar. Não era o caso de se tomar isso como sinal de fraqueza, pois minha avó tinha colocado no mundo Alfredo, Ernesto, Orlando, Luiz, José, João e Iolanda, esta morta aos 7 anos de pneumonia.
Com efeito, é somente à parturiente a quem cabem os esforços do parto. E foi isso que coube a minha mãe que para tal já havia se preparado adrede atacando o estoques de galinhas amarelas, da raça ródia, que meu pai havia comprado justamente para tal. Esqueci-me ainda de dizer que minha tia Cecilia, esposa de meu tio Orlando, também estava no último mês de gravidez de quem viria a ser meu primo Luiz , de modo que ela e minha mãe atacaram o tal plantel galinháceo de modo tão raposino que nenhuma delas sobrou.
Depois de muito esforço, assopros, gritos e gemidos, acabei por dar com os costados de volta nesse mundo chorando como um bezerro revoltado. Me separaram do cordão umbilical e de minha mãe com uma tesoura feita com aquele aço sujo segredo se perdeu e então, a velha parteira de muitos partos e rituais, como se resolvesse conferir a mim alguma benção ou proteção adicional, pegou o sangue de meu cordão umbilical e fez com ele um cruz vermelha na minha testa.
A parteira Maria Negreiros banhou-me então na bacia com a água agora já morna, vestiu-me com meus panos de bunda e com a melhor roupa que minha mãe havia eito para mim, com carinho e desvelo de que só as mães são capazes e, só então, mostrou-me à minha mãe dizendo que se tratava de um menino grande, de cabelos bem pretos e saco bem roxo, além é claro de ótimos pulmões.
Indagada por minha mãe sobre o motivo de ter marcado minha testa com uma cruz de sangue, a boa senhora disse que era para que eu fosse sempre uma pessoa honesta. Fato é que, querendo ou não, ao assim proceder, a velha parteira acabara de me marcar como cristão com a cruz a lembrar Jesus, o Salvador, e a declarar a fé no crucificado, pelo qual se recebe a salvação eterna. Fui, portanto, batizado com o sinal dos discípulos de Jesus, tendo minha fronte marcada com uma cruz tão vermelha quanto o sangue derramado por Jesus, a qual nunca mais poderá ser apagada. Pela imposição da cruz o marcado passa a pertencer a Jesus e será salvo por Jesus crucificado e ressuscitado.
Eu que já havia combatido pela cruz e com a cruz no peito, me senti novamente protegido e em terreno familiar e, como é do feitio dos recém nascidos, pus-me quieto e dormi, pela primeira vez, ouvindo bem ao lado a ainda ofegante respiração de minha mãe.
Foi só aí então que minha avó Josefá apareceu para me ver, não sei bem o que a velha italiana pensou ao me ver pela primeira vez, pois eu era um pouco menos claro que os seus demais netos, estava cercado por uma profusão de gente de olhos verdes, azuis e de peles bem bancas, ainda que algo queimadas pelo sol da labuta diária no campo sob o sol tropical.Porém era normal, tinha todos os membros e dedos e ainda por cima bons pulmões e como dizia meu avó Constante, che non se contenta gode !
Pouco me lembro de meu avô Constante, tenho a garrucha de dois canos que era dele, marca acier tin, fabricação de final dos anos 1800, e até mesmo com ela já atirei, andei perseguindo sua navalha de barba, mas, embora minha mãe me tivesse dito que a havia dado a um primo barbeiro e mesmo tendo ido dele comprá-la, não pude deixar me enganar-me e a devolvi depois de saber que não se tratava da mesma. Lembro dos vidros do xarope Fenergam que ele andou tomando no final de sua vida para acabar com seus problemas pulmonares e lembro, que mesmo assim, nunca deixou seu cachimbo nem seu cigarro de palha de lado. Acho que algumas vezes dele me aproximei, mas não me recordo de ter dito ou ouvido palavra, tanto mais por que ele morreu quando eu tinha apenas 6 anos. Lembro de vê-lo lendo o Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO e foi ele, provavelmente a primeira pessoa a quem vi ler um jornal. Acho que foi dele de quem meu pai e eu herdamos o hábito, que conservamos até hoje, de ler o jornal de cabo a rabo. Não sei porque o vechio Tramontini abandou o Floriano de seu nome, se é que ele algum dia o usou pois nem em seu desembarque, em 1884, consta o nome Floriano. Porem quando recentemente descrubrimos sua certidão de casamento, aparece em sua certidão o nome Floriano. Seria por causa de Marco Annio Floriano que em 276 d.C foi escolhido pelo exército no Ocidente para suceder Tácito sem o consenso do Senado e embora com apoio da Itália, Gália, Hispânia, Britânia, África e Mauritânia foi assassinado pelos seus próprios soldados e se tornou conhecido como Il usurpatore !?.

O que ocorria é que mesmo ali, ao nascer, já era eu, então, um espírito de muitas luzes, muitos saberes e muitos sofreres, frutos de minhas muitas andanças por muitas terras, vidas e épocas à causa de sucessivas re-encarnações, estas ônus e fruto de minha adorada e maldita inclinação bélica que sempre me levava, por amor á guerra , a matar e destruir retornando a cada vez a um estágio espiritual anterior ao que me encontrava. Era assim, vindo do túnel úmido e escuro dos tempos passados, respingado pelo doce sangue de muitas batalhas, esgotado pelo esforço de matar e não se deixar morrer, com os pulmões em brasa pelo novo reencontro com ar quente e muitas vezes respirado da tarde, vim dar novamente com os costados nesse umbral berrando mais que 600 diabos .
Mesmo à quem tenha lutado em Maratona, contra Dario em Arbela, , á sombra do Touro da Legio X, contra os godos em Adrianopla , Busta Gallorum, lechefeld, Hastings, Saratoga e Stalingrado, não se garante uma nova, bélica e emocionante reencarnação e há como um hiato silencioso dos gritos dos homens e dos seus canhões, inodoro dos cheiros de poeira, couros, animália, excrementos e sangue, sem o tato aveludado dos aços superiores e dos tendões feito em cordas de arcos, sem o peso dos machados e enxós de guerra e sem que se possa desfrutar do terror estampado na face do inimigo à morrer. Não está garantida a camaradagem dos irmãos em armas, o cheiro do pão preto assado nas carroças da equipagem, o vinho vagabundo, a cerveja mal fermentada e o cervo abatido nas florestas silenciosas.
Mas, se por ora você está fadado a uma vida calma, isso não significa que você não possa torná-la um pouco agitada, nem que está fadado a não poder voltar a um nova guerra, afinal, você sempre pode levar seu front aonde for.