Jornal da Tarde
O incômodo barulho das ruas
Depois de Seattle, agora foi a vez da confusão se instalar em Praga.
O incômodo barulho das ruas
Depois de Seattle, agora foi a vez da confusão se instalar em Praga.
É preciso aprofundar a análise das razões pelas quais as reuniões de rotina dos três
organismos internacionais, fiadores do processo de abertura global - FMI, Banco Mundial e
OMC -, acabaram transformando-se numa sucessão ruidosa de confrontos entre jovens ativistas, ONGs e forças policiais locais. Embora mudando de linguagem e reconhecendo, finalmente, o lado perverso da globalização, as forças dominantes nessas organizações -
os principais países desenvolvidos, sob a liderança dos EUA - estão convencidas de que o melhor a fazer é induzir as grandes nações da periferia a radicalizar a abertura econômica e
as reformas que privatizem seus sistemas econômicos. Assim procedendo, acham eles,
será inevitável que esses países cresçam e distribuam melhor sua renda. Essa crença visa
a garantir o acesso pleno das corporações transnacionais aos mercados mais pobres, alternativas fundamentais à demanda já saturada dos países centrais. De resto, para a periferia, até aqui, a abertura tem trazido quase nenhum crescimento e mais exclusão.
O exame dos argumentos do artigo de Bill Clinton a respeito da concordância
norte-americana à entrada da China na OMC, publicado recentemente no Estado, ilustra
bem essas questões. Diz Clinton que as vantagens econômicas desse acordo serão a
queda pela metade das tarifas chinesas para telecomunicação, automóveis e produtos
agrícolas e a possibilidade de "vender e distribuir na China bens e produtos de fabricação americana sem deslocar nossas fábricas ou transferir tecnologia. Em troca, concordamos apenas em manter o acesso ao nosso mercado, de que a China já desfruta". Acha que a
adoção de um sistema aberto e competitivo é "o único meio de a China enfrentar seus crescentes desafios e evitar sublevações internas e desintegração". Admite que esse
processo gerará enormes tensões no curto prazo, como "mais desemprego e ativismo
trabalhista e político". No entanto, declara-se convencido de que "a única via segura para a estabilidade da China, bem como de qualquer país nesta era global, é a liberação do
potencial de seu povo, econômica e politicamente, e a redução das barreiras à cooperação internacional".
Conclui dizendo não querer uma China forte, que busque o confronto, tampouco uma China fraca acossada por conflitos intensos e transformando-se numa zona de instabilidade
na Ásia.
Trata-se de uma competente peça de retórica, complexa e contraditória, claramente adequada aos interesses da nação hegemônica mundial que cultua a auto-imagem de
"potência benévola". Clinton fala que a abertura chinesa evitará transferir fábricas
americanas para a China. No entanto, deslocar frações de produção dos produtos globais
aos países mais pobres tem sido uma das raras oportunidades de gerar investimentos não especulativos nos grandes países da periferia. E são precisamente China e Brasil os
maiores beneficiários mundiais recentes deste fluxo que tem garantido a entrada de US$ 20 bilhões anuais, essenciais ao equilíbrio da balança de pagamentos desses países.
Justamente quando a OMC caminha para a regulamentação final dos Trim's, disposições burocráticas que impedem os países filiados de exigirem contrapartida de exportações e conteúdo local dos investimentos internacionais feitos em seu território, o que eliminaria
uma das últimas possibilidades dos países pobres de direcioná-los a uma lógica de política industrial conveniente às suas estratégias individuais.
É até possível que uma abertura geral e irrestrita da economia mundial - ainda que regulada nos grandes mercados pelas restrições de cotas e barreiras que só países centrais têm força para impor - possa trazer mais benefícios que desvantagens aos grandes países da periferia. Até aqui, no entanto, as evidências são outras. As aberturas causaram desequilíbrios adicionais em várias regiões, aumentando déficits comerciais e a dependência do capital internacional. A China é um caso particular, dado o grande poder que seu tamanho e situação geopolítica lhe conferem. No seu caso é bem provável que, embora perca a curto prazo, ela possa ter vantagens fundamentais no futuro. Mas não será necessariamente o caso de inúmeros outros países.
Por essas e outras não é difícil entender o barulho das ruas que tem causado tanto alvoroço nas antes tão assépticas reuniões dos fóruns internacionais que sustentam a globalização.
Gilberto Dupas é coordenador do Instituto de Estudos Avançados da USP professor da FDC no Insead (França)
Gilberto Dupas é coordenador do Instituto de Estudos Avançados da USP professor da FDC no Insead (França)


